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Channel: Ensaio – Ronaldo Bressane
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100 noção

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Faz mais ou menos 22 anos que eu faço parte desses 100 anos. Uma das raras coisas de que realmente posso falar ‘faço parte’ é esse bando de loucos. Fiquem com dois modestos golzinhos para comemorar o centenário do Sport Club Corinthians Paulista.

O primeiro é o doc Só Quem É Sabe O Que É, co-dirigido com Phydia de Athayde e Artur Voltolini, co-produzido pela PorqueEu Filmes. É a história do Timão narrada a partir da descida à série B, exclusivamente do ângulo dos torcedores.

O segundo gol, mais individualista, foi uma contribuição para a Revista Nacional do JR Duran. Ele tinha umas fotos de torcedores do São Paulo e do Palmeiras e me perguntou se eu não teria algum texto sobre ‘torcidas’. Torcendo um pouco seu briefing, narrei a primeira vez que fui ver um jogo do Corinthians – justamente contra o Tricolor. Então o texto também serve pra festejar o tabu de 4 anos sem perder do pó-de-arroz… Bola rolando!

Majestoso

A primera vez que um corinthiano invadiu a pequena área são-paulina

– Inho, inho, inho! Eu já peguei nos peitinho! Inho, inho, inho! Eu já peguei nos peitinho!

Na arquibancada Mauro pulava feito debilóide: a TV Globo tinha focalizado a Vanessa, nossa musa de prédio, a dez metros de nós – mas do outro lado das cordas que nos separavam. Deus, que dupla de ataque a loura tinha.

– Ilho, inho, inho! Eu já peguei nos peitinho! – a gente ecoava o Mauro, e logo nosso grupo era parte de um corinho, depois um coro maior, e a palavra de ordem foi crescendo até ser tomada por umas cinqüenta pessoas à nossa volta, que cantavam e apontavam a menina, e o inho ia aumentando, aumentando até se metamorfosear em ão, de repente o cântico se tornou o grito da Gaviões da Fiel, e logo em seguida, tudo, tomou conta dos gogós nos nossos sete gomos do estádio do Morumbi:

– Ão, ão, ão, eu já peguei nos peitão!

E a linda e peituda Vanessa, a ex-namorada do Mauro, ainda sorrindo para a câmera, quando afinal se deu conta de que aquele refrão era todinho pra ela, trinta mil pessoas em religiosa louvação, ficou com o rosto na cor que diferenciava as duas torcidas. Mas nem deu tempo de a moça passar do vermelho pro roxo porque logo em seguida o time alvinegro entrou em campo e o Morumbi foi coberto pelo cheiro denso da pólvora… e por uma fumaça preta atiçada pela torcida e pelo hino inigualável em sua vocação à melancolia do pós-guerra, à marcha de quarta-feira de Cinzas em tom menor:

– Salve o Corinthians… o campeão dos campeões…

10 de julho de 1988, quartas-de-final do campeonato paulista. Era meu primeiro jogo como torcedor.
Até então indiferente ao futebol, havia atendido à chamada na chincha dos amigos para conhecer aquela emoção estranha que viviam exaltando. A loa às mamárias de Vanessa eram o segundo capítulo da iniciação à cafajestagem que concede a todo torcedor um manto de invisibilidade moral – e dos corinthianos em relação às são-paulinas em especial. Naquele teeempo (voz trêmula de tiozinho), impunha-se no estádio quem colocasse mais gente. Mesmo o tricolor mandando o jogo, a torcida alvinegra era de hábito maioria (pelas leis atuais, o mandante destina apenas 10% da carga de ingressos ao visitante). Contra o São Paulo era sempre sete gomos a cinco, e olhe lá.

Só que não tinha jeito: a torcida são-paulina era muito mais florida. E as flores de um perfume mais rico que nosso fedor gambazento – eu ainda mal era corinthiano, mas só de estar ali no meio da Fiel já me sentia mais sujo. No nosso prédio, quando víamos as meninas no uniforme pó-de-arroz, sentíamos um tesão diferente; não importa se as raras corinthianas da turma fossem tão gatas ou gostosas quanto. Era quase uma perversão. Na chegada, de cima, descendo do busão, as víamos lá dentro do clube dos magnatas, as coxas saudavelmente rosadas, as axilas suadas depois da sessão matinal de tênis, os cabelos molhados depois das braçadas nas aristocráticas piscinas, se percebia até que algumas não usavam sutiã sob as listras, sabe-se lá o que esconderia o apertado shortinho vermelho…

E assim, enquanto nos aproximávamos do Morumbi, contornando o estádio para chegar às entradas destinadas ao clube do povão, nossos miolos iam lentamente se tingindo de vermelho, o vermelho das bocas são-paulinas, e dos mamilos, e das bucetinhas, até que finalmente surpreendíamos as tricolores mais de perto, através das grades do portão do clube social, que escalávamos e mandávamos nosso grito de guerra:

– São-pauliiinaaaa! Gostoooosaaa! Corinthiano vai comer! São-pauliiinaaa! Gostooosaa!
– Aaaaaai!

Mais um capítulo de Casa Grande X Senzala, a novela da família brasileira. Várias mocinhas corriam de volta para dentro, temendo o ataque dos zumbis. Contudo, uma que outra ficava de butuca, olhando de esguelha os maloqueiros em chamas, essa aqui com curiosidade, aquela ali com algum fogo safado feito o nosso, tesão da patricinha pelo filho da empregada… até que se voltasse numa reboladinha, esfregando em nossos famintos narizes uma supimpa bunda empinada, vitaminada por iogurtes e sucrilhos a que nunca tivemos acesso, por certo também teria um obscuro e tesudo cheiro vermelho aquele buraco a nós vedado; que desgraça, talvez até o cocô são-paulino fosse mais cheiroso que a nossa merda.

– Sai! Sai!

Era a PM distribuindo borrachada no quengo dos corinthianos empoleirados no portão do clube.

– Sai! Sai!

Era a Fiel da arquibancada espantando no grito a bola que zanzava entre nossos zonzos zagueiros. O último campeonato o Corinthians havia ganho em 1983, sobre este mesmo São Paulo, porém aquele escrete tinha o mítico meio-campo e ataque de Zenon, Casagrande e Sócrates (a única justificativa para eu estar ali no meio da favela, além da curiosidade antropológica de um nerd de 17 anos e da encheção de saco dos amigos alvinegros, era a simpatia pela mística guevariana do Doutor; no meu imaginário teen-esquerdizante, em 1982 a Itália foi para o Brasil o que representou para o Che a Bolívia em 1968).

Em 1988, apesar da bravura dos recém-promovidos Márcio e Ronaldo ou da entrega de um Biro-Biro, o time era meia-boca. Já o São Paulo, além de campeão paulista, era – como sempre foi e sempre será – um time mais organizado. Esta característica tricolor é outra pontada no fígado de todo corinthiano, outra qualidade do vizinho que nos define: se a raça seria o bem inalienável de uma alienada torcida, a capacidade de administração do adversário indicaria nossa inescapável vocação para a tosquice, o improviso, o malfeito, o quase, o repentino, o relâmpago, para o bem ou para o mal – que convoca, ao azar, tanto o abismo quanto a glória.

Dentro do arcaico imaginário corinthiano, dos 80 para cá o torcedor passou a diminuir a importância do Palmeiras como arqui-rival (a Academia verde sempre se contrapôs com a tradição futebolística do refinamento europeu) para dirigir seu ódio ao São Paulo, o paradigma da supremacia via objetividade e eficiência. Não é à toa que no time de 2009, sob esquema bem montado pelo pragmático Mano Menezes, o astro seja justo aquele que dá à macunaímica torcida tanto o golaço imprevisível quanto a presepada de um escorregão: Ronaldo Fenômeno.

Na arquiba, a chiadeira da Fiel não vuduzou a uruca: São Paulo um a zero. No ato, o Mauro, o Fernando e o Nenê me sacaram desconfiado:

– Se perder, não pisa mais no estádio!

Era meu vestibular de torcedor. Quantas vezes, anos depois, eu assumiria a culpa alheia maldizendo algum detalhe bizarro da minha conduta? Quando Raí fez o terceiro gol na final do Paulista de 1991 (e era um pesadelo justamente o irmão do Doutor se tornar nosso maior carrasco), cavilei estranhas triangulações na minha vida, apontando no fracasso do time uma culpa esotérica por não ter percebido que estava no terceiro ano da faculdade, aquele dia completava três meses de namoro (sorte no amor, azar no jogo), não tinha usado as mesmas camiseta e cueca dos jogos anteriores… Sob a rave de buzinas em que se transformou a cidade (alvinegros fazem mais barulho com fogos de artifício e rojões – embora a torcida seja maioria em São Paulo, a pobre maioria da torcida não é motorizada), nunca foi tão difícil dormir como naquela noite. Bêbado da cachaça irracional que sustenta todo torcedor, eu via na derrota para aquele mágico São Paulo de Telê Santana o próprio fracasso da minha família, a falência financeira do meu pai e um irremediável dom para o quase tatuado no DNA da minha estirpe.

Em 1991 todo esse melodrama melava minha alma mesmo que somente um ano atrás o Corinthians tivesse vencido o São Paulo na conquista do primeiro título nacional, com uma equipe liderada por um craque em tudo o contrário do múltiplo Raí: Neto. O camisa 10 alvinegro era o avesso do 10 tricolor – individualista, falhava na marcação, seu porte era atrapalhado pela incipiente pança, fumava, bebia, não era bom moço nem tão bonito, não falava francês nem vinha de família de nome, volta e meia era expulso. Era um gênio maloqueiro, o caipira astuto que com paixão – e uma perna esquerda de força e habilidade espantosas – virava placares perdidos e fazia gols improváveis como aquele antológico contra o Flamengo, no Maracanã, a uma distância de 60 metros.

Mas se naquele jogo de 1988 ainda não havia Neto, o Corinthians contava com a Gaviões da Fiel. A maior organizada do país completava 21 anos e era (ainda é) o coração e centro nervoso da torcida alvinegra. Meus amigos fizeram questão que eu conhecesse o espetáculo ao lado da turma do bumbo; o regulamento permitia que os integrantes levassem quantos instrumentos quisessem – e assim que o São Paulo fez o seu gol, a Gaviões encontrou sua motivação para aumentar o volume do batuque. Então eu conhecia o segundo capítulo da nossa fé sadomasoquista:

Não abaixarás a cabeça face às adversidades; ao contrário, cantarás ainda mais alto e com mais alegria e fervor.

Que poderia ser traduzida por:

– Porra! Caralho! Torcida de cusão! Quem manda nessa porra é a torcida do Timão!

Ou:

– Sou/ da Gaviões, eu sou/ Corinthians joga, eu vou/ E ninguém vai me segurar/ Sou da Gaviões eu sou/ Vou dar porrada, eu vou/ E ninguém vai me segurar / (Nem a PM!)

Ou ainda, com doçura:

– Independente, vem dar o cu pra gente!

Independente é o nome da maior torcida são-paulina, cujo símbolo é um musculoso São Paulo (“Eu sou um guerreiro que sozinho mata mil/ Eu sou da Independente, a mais temida do Brasil / Se é pra matar/ Se é pra morrer/ Eu sou da Independente e vou botar pra foder“). Surgiu como dissidência da TUSP, a primeira torcida uniformizada do país, nascida em 1939 e extinta em 1995. Hoje rivaliza com a Dragões da Real. Assim ela respondia:

– Como eu te amo tricolor/ Como eu te amo demais/ O dia que tu não existir/ Eu não quero sorrir nunca mais!/ Ô tricolor tu és minha paixão/ Ô tricolor tu és minha alegria/ Ô tricolor tu és meu viver/ Ô tricolor eu amo você!

O amor é lindo, mas a letra nem tanto. Entre 1988 e 2009, aditivada pelos títulos que fizeram do São Paulo o time mais vencedor da história do futebol brasileiro, a torcida são-paulina se tornou a terceira do país, só ficando atrás das do Flamengo e do Corinthians. Mas em termos de originalidade e força as torcidas tricolores aindam perdem de goleada dos oitenta mil sócios da Gaviões da Fiel, de onde saiu o parnasiano grito “Bando de louco” (“Aqui tem um bando de louco/ louco por ti Corinthians/ Àqueles que acham que é pouco/ Eu vivo por ti Corinthians/ Eu canto até ficar rouco…“, rimando “louco”, adjetivo substantivado, com o advérbio “pouco” e o adjetivo “rouco”). Ou das notórias galhofas rubro-negras, como a versão de “Dá-lhe Mengo” para o hit “Vale tudo“, de Tim Maia. Ou, em outro registro, os fúnebres hinos heavy metal da torcida do Grêmio gaúcho. Mesmo assim, a exaltação romântica não era predominante na torcida tricolor – eles também têm seus maloqueiros (como qualquer torcida). Por isso o duelo melhorava:

– Ô-ô-ô-ô, corinthiano, maloqueiro e sofredor/ Graças a Deus!

– Ponho a camisa e a toquinha/ Fumo maconha, cheiro farinha/ Fico doidão pra dar porrada/ Os galinha tão cansado de correr/ E a Mancha Verde coitada pequenininha/ Soco todos e coloco num Fusquinha!

– Corinthians veio pra vencer
/ Corinthians veio pra vencer
/ Corinthians veio pra vencer
/ E o São Paulo se foder!

– Domingo, Eu vou lá no Morumbi / Eu vou, eu vou / A Independente vai invadir / Vou levar foguete e bandeira/ Não vai ser brincadeira/ Ele vai ser campeão/ Não quero cadeira numerada/ Vou de arquibancada pra sentir mais emoção/ Porque meu time/ Bota pra foder/ E o nome dele são vocês que vão dizer: / São Pauloooo!

– Lêêê/ leleô/ 
Leleô, leleô, leleô / 
Corinthians!

Ali na trincheira, me impressionava não só a implacável bateria nota 10 da Gaviões mas um canto incessante lá no fundo: “Timão, ê ô, Timão, ê ô“. Talvez esculpida pelo vento gelado que se encanava pelos anéis do estádio, a musiquinha em tom maior ia semitonando pra um modo menor desafinado, tanto quanto as desafinadas do nosso medíocre esquadrão, um esquadrinho frente à correria alucinada dos Menudos do Morumbi – o apelido do escrete tricolor que traçou tudo no começo dos 80 com Sidney, Muller, Pita, Bernardo, e agora estreava Raí. Embora nossas investidas fossem cada vez mais raras e desatinadas, aqueles mil crentes que formavam o núcleo duro da Gaviões impunham o seu canto modal, que, mesmo soterrado pelas milhares de falas e repiques e gritos e esfriado pela noite que nos trazia mais uma derrota, continuava perene, onipresente, evanescente e fiel como o mau hálito de um gambá.

Então, aos 47 do segundo tempo, depois de um bate-rebate na pequena área tricolor, Biro-Biro, em posição de impedimento, interceptou uma bola espirrada pela zaga e chutou de bate-pronto, de canela. A bola explodiu no travessão e entrou.

Gol!

Aí senti a tal emoção… a sensação. Muito diferente da alegria genérica de um gol da Seleção Brasileira. Até hoje não sei explicar o que aconteceu naqueles segundos pré e pós gol. Tinha algo a ver com pesadelo, vingança, felicidade e vontade de morrer, flores e pólvora. O Morumi tremia, tremia e balançava com a Fiel pulando desvairada. Achei que o mundo poderia acabar. E se acabasse, tudo bem.

O resultado classificava o Corinthians às semifinais. Quatro jogos depois, o time seria campeão em cima do Guarani, com gol de Viola. Em minha primeira temporada de torcedor, já vestia a faixa. Mais tarde até me acostumaria às vitórias, na melhor fase da história do alvinegro. Porém, sempre que estou no meio da torcida e escuto aquele canto modal monocórdico, de algum modo retorno à emoção difusa no jogo contra o São Paulo, a melodia que passeava numa linha fina entre vida e morte. É como uma droga – todo torcedor de todo time sabe bem disso (já comprovei isso metido nas torcidas do Palmeiras, do Santos, do Flamengo, do Grêmio e até do tricolor). Talvez a única diferença dos corinthianos para os outros é que nossa droga é mais potente – daí sermos um tanto mais chapados.

No condomínio, os são-paulinos haviam desaparecido. Ficamos um tempão na janela mandando nossos “Chupa, tricolor” (o termo “bambi” ainda não havia sido oficializado pelo Vampeta). Até que deu meia-noite e resolvi sair fora do apartamento dos amigos, meu prédio ficava do outro lado do condomínio. Passando pelas piscinas, acendi meu cigarro pra dar um tempo antes de encarar a triste sina de encerrar a semana. Vi um reflexo vermelho, preto e branco se agitando na água, e um murmúrio suave. Vanessa.

No condomínio ela era notória por dar dessas: perambular de madrugada, se jogar na piscina de roupa e tudo, muitas vezes sozinha. Como naquela hora. Quando ela saiu da piscina o uniforme do São Paulo nunca me pareceu tão majestoso. Caprichei no meu sorriso vencedor. Era o primeiro sorriso vencedor da minha vida, aliás. Pingando, Vanessa subiu, sentou na beira da piscina e me encarou fria como seus olhos azuis, torcendo o cabelo:

– Parabéns.

Suspirou, bufou e disparou a falar da merda de jogo, da merda de futebol, da merda de ter ido ao Morumbi e ter sido filmada pela Globo e ter escutado a zuação do estádio inteiro e ainda ter que ver aquele merda do Biro-Biro fazer um gol no finalzinho e bem na hora que vim tomar um banho sossegada me aparece um corinthiano pra me encher o saco, o teu amigo Mauro é um bosta, e além do mais, se você quiser saber, ele nunca pegou em mim.

– Me alcança a toalha ali na cadeira?

O resto não conto, a não ser que teve a ver com pesadelo, vingança, felicidade e vontade de morrer, flores e pólvora.



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