Quantcast
Channel: Ensaio – Ronaldo Bressane
Viewing all articles
Browse latest Browse all 33

Trinta horas no Galeão

$
0
0

Não é essa coisa linda que você vê logo que chega ao Rio

Não é essa coisa linda que você vê logo que chega ao Rio

A pedido da revista 2016, passei três dias inteiros no Aeroporto Internacional Tom Jobim, a porta de entrada para as Olimpíadas. Acompanhe minhas impressões

O Galeão está mais abandonado do que o navio pirata de Jack Sparrow. Tome cuidado com as almas penadas“, comentou comigo o fotógrafo JR Duran quando disse a ele que uma revista havia me convidado para passar três dias no Aeroporto Internacional Tom Jobim. O catalão radicado em São Paulo sabe do que está falando: às vezes viaja três vezes na mesma semana, pelo Brasil e exterior, e já preencheu seis passaportes. Mas não é preciso ser um expert em aeroportos para sacar que uma das principais portas de entrada para o Brasil é um dos aeroportos mais feios, desgraciosos e desconfortáveis do mundo.

Chego ao Galeão na manhã de uma segundona brava, direto de Congonhas. De cara, adentrando o Terminal 2, uma constatação. Embora construído com materiais semelhantes aos de Cumbica, Galeão leva uma vantagem em relação ao aeroporto mais medíocre do planeta: é mais claro. Mas, espere, não muito. O granito cinza reina no chão em quadriláteros que refletem as luzes do ambiente, muitos deles manchados (como é que se mancha granito?). A moça do café quer trocar minha nota pois segundo ela minha onça está não só pintada como manchada e não pode aceitá-la. Troco a nota e olho pro teto, bufando: está todo manchado também. Manchas incomodam, agridem. A paleta do Terminal 1 se degrada em cinza, gelo, bege e azul-calcinha, tons com tendência ao desmaiado que uniformizam a experiência cromática na direção inexorável do tédio. Uma adolescente holandesa, que parece não controlar a própria gostosura, tira a minha atenção das tristes colunas retangulares que aqui e ali interrompem a amplitude dos saguões que comunicam, através de escadas rolantes, o térreo e o segundo andar, e o contraste entre curvas e retas me faz me perguntar: por que chegar ao Rio de Janeiro e ter só ângulos fechados como comitê de boas-vindas? Que tristeza para o carioca Oscar Niemeyer, que sabia usar o concreto para venerar as curvas femininas.

Terminal 1 visto de fora

Terminal 1 visto de fora

Outra coisa a se notar de imediato é que o aeroporto não tem wi-fi gratuito (só nas salas de embarque, e ainda assim ruim), e a rede 3G é lentíssima. Não se veem locais em que o acesso a internet ou rede elétrica seja facilitado, a não ser duas pequenas lan-houses. As luminárias, dispostas em estreitas fileiras listradas, não têm uma uniformidade – há luzes mais amarelas, outras mais brancas, outras parecem marrons. Por que um lugar de passagem precisa ser tão sem graça? O aeroporto nos proporciona três tipos de experiências: chegar, partir – ou esperar por uma das duas coisas, para você mesmo ou por alguém. De nenhum lugar no térreo se consegue ver o céu; se um aeroporto é o atracadouro do horizonte, o firmamento deveria estar firme em todo lugar para se olhasse – não faz sentido? Este Terminal foi criado em 1999 mas parece ser bem mais velho. Aqui e ali vemos portas em vidro fumê escuro fechadas sem nenhuma explicação para que servem além do famoso Proibida a Entrada de Pessoas Estranhas, que me faz me perguntar o tempo todo o quanto serei estranho ou familiar para poder pisar ali dentro.

"Arte" de Romero Britto espalhada pelo terminal

“Arte” de Romero Britto espalhada pelo terminal

Do outro lado do terminal, um grande mural de péssimo gosto, chamado Rio Fantástico – Monumental, bancado pela Petrobras e pintado por um tal de Sansão Pereira exibe os clichês cariocas mais recorrentes – o bondinho de Santa Teresa, o Maracanã, o Redentor, a Glória etc. Objetos horríveis retratando bichinhos, criados por Romero Britto, estão espalhados por ambos os terminais. Logo descubro que o posto aeroportuário da Anvisa está em greve. Aqui e ali há cartazes colados nas paredes, sem o menor critério, como em qualquer repartição pública. E um casal se despede com emoção. Choram tanto que penso em ir consolá-los. Subindo um pavimento, encontro, em frente ao posto da Anvisa – um espaço de uns 200 m2, vazio – uma mesinha de mármore e madeira clara onde posso me sentar para fazer essas notas e tentar recarregar a bateria do celular. Nesse lugar deprimente, de teto baixo, se pode ver a má qualidade das instalações e do acabamento do terminal. Uma locutora de voz insinuante, porém meio robótica, felizmente me sacode do meu torpor avisando chegadas e partidas – e recordo que é a voz mítica de Ísis Lettieri, verdadeiro patrimônio imaterial do Brasil, por ter trabalhando mais de 30 anos no Galeão; hoje sua voz só comparece gravada, em intervalos estranhos, daí o robotismo. Dois caras trabalham em uma mesa semelhante à minha escutando funk bem alto – e como esse espaço é separado pelos fundos de uma escada rolante, rola uma ambiência de discoteca. “Aqui tudo é construção e já é ruína“, cantaria Caetano Veloso ao olhar as paredes descascadas de um terminal inaugurado há apenas 13 anos.

Cantinho confy para escrever

Cantinho confy para escrever; ao fundo, o tenebroso mural

Eduardo Paes chega trazendo a Bandeira Olímpica. No auditório lotado de jornalistas, ele se autoglorifica e lança o hino das Olimpíadas no Brasil, um troço realmente horroroso, chamado “Os grandes deuses do Olimpo visitam o Rio de Janeiro“, uma salada de obviedades sobre samba-funk. Escapo da sessão de perguntas a Paes – e político lá responde alguma coisa que não queira? – para seguir o passeio. Em frente à Engraxataria do Presente, noto que o Terminal 1, construído em 1977, é ainda mais feio do que o 2. Lúgubre, de teto acanhado, estruturado em tons ainda mais escuros, e bem mais lotado, dá vontade de pegar o primeiro avião para voltar de onde se veio. Sério que essa é a primeira impressão do Brasil para a gringolândia? Granitos escuros no chão, paredes cinzentas e frisos metálicos cinzas dividem espaço com aberrações arquitetônicas como uma claraboia azul-cinzenta sobre uma espécie de mezanino inútil que apenas serve para ligar um pavimento ao outro. Ao final do terminal, próximo à Polícia Federal, uma parede de pastilhas vermelhas divide o espaço com paredes de fórmica bege, que escondem antigas lojas, ora desalojadas; há apenas um solitário trabalhador ali, um certo Rosenberg, com quem travo o seguinte diálogo:
— Olá, tudo bem? O que você está fazendo aqui?
— Como assim? Quem é você?
— Perguntei primeiro, quem é você?
— Mas se eu não te conheço, como vou dizer?
— É que só tem você aqui.
— Porque esta é a última loja dessa área. Logo vamos fechar.
— E o que você faz?
— Todas as instalações telefônicas do aeroporto. Por quê?
— É pra uma matéria — desisto.
— E por que não falou antes? — riu. Neguinho só conversa com você se você diz que vai sair publicado em algum lugar.

Seu vizinho é, estranhamente, a Confederação Brasileira de Judô, que acaba de trazer mais medalhas ao país – o espaço é decorado com fotos enormes de judocas como Flávio Canto e Aurélio Miguel. E a seguir temos um terraço vazio que dá para, ufa, a pista do aeroporto, mas não existe uma única cadeira para contemplar as idas e vindas dos aviões – e cada janela é decorada com um enorme logotipo da Infraero. Medo que roubassem os vidros?

O mais tosco estudante de arquitetura reprovaria esse mezanino inútil

O mais tosco estudante de arquitetura reprovaria esse mezanino inútil

Descubro que há um hotel ali, o Luxor, onde se hospeda por no mínimo três horas a R$ 200. O atendente me informa que o hotel tem 100% de ocupação e que não há vaga naquela hora, desculpe. Seu vizinho é uma capela em que só se oferece serviço religioso a católicos ou evangélicos – viajantes judeus, budistas ou macumbeiros que vão rezar noutra freguesia. E a seguir há a praça de alimentação do aeroporto, ocupado por restaurantes de pouca tradição e nula importância gastronômica; garçons te chamam para comer no seu pedaço como os porteiros dos puteiros da rua Augusta caçam os clientes para suas casas noturnas. O único toque de classe reside no restaurante Palheta, em que há um certa sensação de glória decadente na decoração que usa aviões da Segunda Guerra, livros e fotos aeronáuticas – o restaurante também oferece vista para a pista. Nota-se que havia antigamente um terraço, infelizmente agora fechado por essas horrendas janelas-Infraero que tapam a visão. Me sentindo um tanto aéreo enquanto contemplo um grupo de aeromoças cariocas, penso se não teriam uma maior lentidão de movimentos que as aeromoças de outros lugares. Um louquinho de camisa da seleção brasileira e chapéu de cowboy (me dizem que ele vem todo dia ao aeroporto) gasta um par de horas vigiando os aviões – você pode ficar o dia inteiro no Palheta, se quiser, ninguém vai te incomodar nem perguntar se você quer alguma coisa. No Galeão ninguém está nem aí pra você.

Assim o Rio trata seus turistas: sem wifi nem tomadas

Assim o Rio trata seus turistas: sem wifi nem tomadas

Na Engraxataria do Presente papeio com Vanderlei Vicente do Nascimento, 60 anos, há 30 anos brilhando pisantes entre o Galeão e Santos-Dumont. Pra ganhar o salário mínimo e as caixinhas, o natalense trabalha das 6 da matina às 11 da noite: já lustrou sapatos de Zagallo, Dedé, Piquet e Parreira – sua glória foi ter ido ao Jô Soares. Cada engraxada custa R$ 13; somente executivos solicitam o serviço – ”A culpa é desses tênis malditos, que todo mundo usa agora, ninguém mais tem classe“. Somos interrompidos por um cortejo de cerca de 200 servidores das agências reguladoras – Anvisa, Anac, Ancine etc – que lutam por salários melhores. Por conta da operação-tartaruga há filas de mercadorias engargaladas no porto seco do Galeão, me informa a bonita servidora Sanya Franco: “Dilma não negocia com ninguém, quer ganhar pelo cansaço“, diz, ela mesma com um profundo ar de tédio. Tédio é uma doença contagiosa aqui. (Sobre o bizarro papel das agências reguladoras, sugiro o excelente e estarrecedor artigo do crítico de arquitetura Fernando Serapião na Folha de S.Paulo. contando como Cumbica ficará ainda mais horrível por culpa da Anac.)

Doidinho vai todo dia ao aeroporto para "ter lições de partir"

Doidinho vai todo dia ao aeroporto para “ter lições de partir”

O aeroporto é um coração que se contrai antes do almoço até antes do jantar, se abrindo de manhã bem cedo e a partir das seis da tarde. Um grupo de dez viajantes cegos esbarra em uma turma de surfistas que têm de pular as gatinhas bronzeadas sentadas no chão, onde conseguiram achar uma tomada para ligar o iPad. Não há tomadas, e, noto agora, também não há plantas em nenhum lugar do aeroporto – não é bizarro isso, nesta cidade tão selvagem e verde? Um painel na esteira que liga o Terminal 1 ao 2 conta a construção do aeroporto e percebe-se que ele é ainda mais triste do lado de fora, sem nenhuma ideia arquitetônica original a nortear o projeto. A sensação de que a morte passou por perto do seu voo certamente habita esses grandes espaços desertos da esteira de passagem entre terminais, e me lembro das almas penadas de JR Duran e também da frase de Alain de Botton sobre nosso estado de espírito ao visitar um aeroporto: “A felicidade parece estar sempre em um outro lugar que não aqui“. Menos esperançosa ou cínica, outra frase boa é “Todos os dias o aeroporto me dá lições de partir“, esta do fatalista Manuel Bandeira. Após 40 horas zanzando pelo aeroporto, certamente aprenderia algumas lições – nenhuma sobre a beleza, no entanto. A não ser a beleza contida na voz glacial e sexy da, ahhh, que saudade!, Íris Lettieri.

A fantasmagórica esteira que liga o Terminal 1 ao 2 lembra: você vai morrer

A fantasmagórica esteira que liga o Terminal 1 ao 2 lembra: você vai morrer

UPDATE: Horas depois de eu postar esse texto, rolou um BLECAUTE no Galeão. Derruba e começa tudo de novo do zero, vai.



Viewing all articles
Browse latest Browse all 33

Latest Images





Latest Images