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Channel: Ensaio – Ronaldo Bressane
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Rumo à Estação Frilândia

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Você resolveu dar um pé na bunda em seu emprego chato e agora encara o abismo de ser um “profissional liberal autônomo”: não tem chefe, mas tem vários clientes, e precisa arranjar você mesmo o seu trabalho – do começo ao fim, e sem garantia de amanhã. E agora? Pensata-playground para a Vida Simples de junho 

Eu queria ultrapassá-la, só que ela insistia em bambolear na minha frente, fechando meu caminho, os braços levantados e próximos ao rosto como os de um pugilista armando a guarda. Eu ia para a esquerda, a senhora gordota também; direita eu, direita ela. Eu queria chegar logo em minha mesa, checar meus emails, entrar no Twitter, no Facebook, ouvir uma piada besta do Vicente e a última sobre aquela banda da Anninha e fingir que aquela informação que o chefe me dizia era nova e contar pro Marcelo que a gostosa do RH estava infernal no elevador – e, quem sabe, se desse sorte e não estivesse muito distraído, garrar no batente.

Mas a tia bamboleava em seu pugilato autista.

Até que parou sob uma lâmpada numa esquina do corredor. E levantou as mãos na direção da luz, punhos cerrados. E então eu vi. E entendi. E me resignei a aceitar a verdade; era demais. Tive uma epifania inversa ao descobrir por que motivo a senhora andava daquele jeito joão-bobo: estava limpando os dentes com o fio dental. E agora, sob a luz amarelada do corredor, conferia se algum pedacinho de qualquer coisa tinha ficado no floss. Aquilo me iluminou. Entrei na sala do chefe e pedi demissão.

Motivo fútil, eu sei. Toda gota d’água é fútil, e indúctil: cai e derrama tudo, rebenta os motivos mais profundos que boiavam represados. No meu caso, a cena da tiazinha que limpava os dentes em público como se não houvesse amanhã só acelerou minha vontade de abandonar a rotina de bater cartão em uma grande e poderosa empresa. Fiquei sabendo que a senhora havia entrado ali como uma jovem audaciosa e atrevida, cheia de gás e de talento. Agora seu talento se resumia em divulgar suas cacas aos colegas. O que é isso, meu amor, será que eu vou virar bolor?

Meu emprego era excelente; ótimo salário, equipe bacana, horário salubre, mordomias, desafios e linda vista para o rio Pinheiros. Eu era um cliente vip e diferenciado da zona de conforto, prontinho pra virar geléia de clichê. Aí a saudade da frilândia bateu forte. Caí fora antes de mumificar como a tiazinha. E não me arrependo.

Muitos “profissionais liberais” (sempre penso em sacanagem quando escrevo isso) – não só da área de texto, como a minha – vêm preferindo a dura calçada do CNPJ próprio ao teto com telhado de vidro da CLT. Existem muitas vantagens em ser freelancer, ou frila – que podem se converter em perrengues rapidinho. Basicamente há duas variantes da estação frilândia: pijamismo vs. caramujismo. Na primeira, em vez do ar-condicionado ora gelado demais ora suarento em demasia, para se refrescar você pode simplesmente colocar um ventilador sob a mesa e direcioná-lo ao seu porta-joias, à moda de Marilyn – como me lembra um frila inveterado, o jornalista e biógrafo Tom Cardoso. No seu banheiro, só encontrará você mesmo, mulher, filhos, room-mate, no máximo a empregada – não vai topar com aqueles estranhos seres que, na firma, você só encontra no WC, comentando futebol entre escovadas nos dentes ou falando loucamente ao celular em plena posição do Pensador (eca).

Depois do almoço, pode respeitar seu metabolismo e tirar uma sesta – em lugar de ficar no computador fazendo “tufta“. Tufta? Como me contou o fotógrafo Ignacio Aronovich, há 20 anos labutando na frilândia, tufta era expressão dos gulag russos que designava “fingir trabalhar” (ele leu isso em An American in the Gulag, de Alexander Dolgun, mas o termo também aparece em Arquipélago Gulag, de Alexander Solzhenitsyn). Quando Ig ia entregar suas fotos em uma redação de revista e via os colegas no Twitter ou no Facebook, fazendo cara de enterro, compreendeu que ali residia a tufta moderna. Bem, na frilândia não tem tufta – ou então você se tuf-tuff. Claro, você pode passar o dia inteiro enrolando, mas estará enrolando você mesmo, já que não tem chefe: você tem clientes. Tem prazos, deadlines e projetos que dependem de sua habilidade de girador de pratos para gerenciá-los.

E aí começam alguns perrengues: você é seu gestor, seu contador, seu motoboy. Noite dessas, em reunião com outros escritores, onde, pra variar, se falava de qualquer coisa menos de literatura, o cronista e noveleiro Antonio Prata revelava seu terror ante a expectativa de, numa madrugada, descobrir que sua impressora não tem toner. É que há empresas de comunicação que pedem que o frila imprima um contrato de cessão de direitos autorais, assine, escaneie o contrato e envie de volta por e-mail.

Muito prático, sim (há empresas que não aceitam isso: querem que você mande o contrato pelo correio, e, juro, não o aceitam impresso em papel reciclado). “Mas e quando acaba o toner, meu Deus?”, desesperava-se o Pratinha. Bem, se você demora a mandar o contrato, pode receber pelo job só no mês seguinte – aí adeus planejamento, olá cheque especial. Ser frila exige, como lembra Mauricio Oliveira em seu utilíssimo Manual do Frila (editora Contexto), muita disciplina. Você não terá mais 13º salário, bônus, necas de benefícios como convênio médico e previdência; por não ter emprego fixo, é sempre olhado com desconfiança ao pedir um financiamento; suas férias devem ser programadas tendo em vista os jobs encomendados; todos os gastos com telefone, internet, luz etc serão contabilizados no seu bolso.

A frilândia é uma montanha-russa. Não há garantia de trabalho amanhã: você tem que, como um troglodita, sair da caverna e matar um leão por dia. Há tempos em que todos os frilas aparecem de uma vez; há semanas em que ninguém te telefona nem escreve. Há que saber esperar a onda boa para surfar, não pegar todos os jobs de uma vez, escolher o que vale a pena – e isso, nem sempre por conta do valor, e sim da possibilidade de uma parceria com seu cliente. E quanto mais clientes, melhor: apesar de o frila ser um amo de muitos senhores, quando um senhor some, ou não tem trabalho, sempre há outra porta onde se pode bater. E um frila esperto sempre deixa o máximo possível de portas abertas.

Indispensável levar em consideração alguns malefícios da frilândia. O pijamismo – termo cunhado pelo jornalista e escritor Xico Sá, na frilândia desde 2009 – pode matar um casamento. A patroa sai e você está lá, de calção e camiseta velha, em frente ao laptop, costurando pra fora. Ela volta e você lá. Ela (ou ele) vai jantar, dormir, ver um filme, ouvir música, chamar os amigos para um vinho – e você lá, zero glamour, vagamente parecido com a decoração da casa, criando musgo. É que frila não tem horário – e sua mulher (ou seu marido) talvez tenha. O casamento, já suficientemente acossado pelos demônios da rotina, pode não resistir a essa desgovernada exibição de solteirismo laboral.

Todo recém-frila deve adorar a liberdade de não ter horário, de esticar os almoços até os jantares, de ver em plena terça-feira um Barcelona x Real Madrid – e depois, por que não, pegar um cineminha com as vovós (o único horário decente para ver um filme sem nenhum ruminante cuspindo pipoca na sua orelha ou um casal comentando todo o filme em cima de sua cabeça é terça-feira às duas da tarde). Só que isso implica em ter de trabalhar num domingo, num feriado, e pouco a pouco desviar-se do schedule das pessoas organizadas com quem você se relaciona – o risco de cair em um autismo social (o que, para um escritor, mais solitária das ocupações, é altíssimo).

Para combater o pijamismo, descobri o caramujismo. É acordar, tomar banho e vestir-se para o trabalho, colocar a mochila com laptop, livros e papéis nas costas, pegar a bike ou a scooter e sair de casa – mas, a cada dia, o trabalho é em um endereço diferente. Há cada vez mais cafés em São Paulo que abrem seu wi-fi para a conexão dos trabalhadores ambulantes: durante a tarde, esses espaços ficam vazios, então é jogo deixar os frilas ocupando as mesas, mesmo que só paguem um único café o dia todo.

Este caramujo indica, na Vila Madalena, os cafés N’O Café, Ekoa e DeliParis, e na região da rua Augusta, o Urbe e o Espaço Unibanco, além da rede de Livrarias da Vila e Cultura espalhadas pelo país. Há tentações: os prazeres do açúcar, da cafeína, da rua, os amigos a interromperem seu trabalho. Para os frilas com déficit de atenção, caso deste caramujo, um risco sério de colocar o prazo em perigo. Por isso é que, fazendo um upgrade no caramujismo, muitos frilas aderem a um dos diversos planos de coworking – como The Hub, Pto de Contato, Junto, em São Paulo, Nitis Office, no Rio de Janeiro, Nós, em Porto Alegre, Smartmob, em Florianópolis. Esses espaços têm todo tipo de plano para quem passa pouco ou muito tempo, com um fixo razoável para as despesas com comunicação – e com a vantagem de, no cafezinho do corner, conhecer pessoas que talvez você não conseguisse acessar quando estava com a bunda aparafusada na cadeira da firma.

Outra opção é o caramujo se juntar a seus iguais e rachar uma casa para levantar um escritório. Sai mais barato, e pode ser um espaço importante depois de tanto tempo de solidão na Estação Frilândia: uma hora baixa pesada a vontade da velha e boa conversa fiada, olho no olho, de onde saem tantas ideias. Bem, talvez nem sempre… Quando a cultura da interrupção volta a cercar os espaços do frila, ele pode lançar mão de sua arma secreta: o headphone. (A trilha deste artigo – iniciado em uma livraria da Vila Madalena, prosseguido em um café da Augusta e finalizado em uma padaria de Pinheiros, interrompido por quatro amigos e uma sessão de cinema – foi toda a discografia do grupo escocês de pós-rock Mogwai.)

Vale a pena? Juntando todas as minhas passagens na frilândia, entre um e outro emprego fixo em redações, conto cinco anos. Daqui, já dá pra afirmar: nunca trabalhei tanto, nunca foi tão emocionante – e assustador – do que na época em que batia cartão. Mas também nunca faturei tanto, jamais conheci tanta gente, e, por certo, me divertindo bem mais do que nos corredores da minha boa e velha firma. Sempre, claro, usando o fio dental em seu devido lugar.



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