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Channel: Ensaio – Ronaldo Bressane
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Crianças-problema

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Arnaldo Baptista (ele mesmo) ilustrou meu artigo. Honra master

O romance Festa no Covil, do mexicano Juan Pablo Villalobos, renova um território pouco conhecido da literatura: o narrador infantil em um livro adulto. Pensata-playground literária para a Bravo! de junho

Sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante são algumas das palavras favoritas do vocabulário de Tochtli, um pré-adolescente de inteligência e rotina incomuns. Ele é filho de um chefão do narcotráfico; sua vida, uma espécie de Alice no País das Maravilhas ao revés. Tochtli protagoniza o original Festa no Covil, do mexicano Juan Pablo Villalobos (Companhia das Letras, 88 págs., trad. Andreia Moroni). O livro de Villalobos pertence à rara linhagem dos livros adultos cujos narradores são crianças ou adolescentes. O romance que talvez tenha cristalizado essa voz ingênua e provocadora, encantada e malévola, é O Apanhador no Campo de Centeio, de JD Salinger. Ali, Holden Caulfield narra peripécias nos dias perdidos entre sua expulsão de uma escola e o ingresso em outra. Referência central da cultura pop, o Apanhador é um parque de diversões perto do livrinho de Villalobos. Se Holden tem que se preocupar com professores hipócritas, colegas alienados e psicanalistas excêntricos, Tochtli está cercado por psicopatas, mentirosos, drogados e animais bizarros – como um casal de hipopótamos anãos liberianos.

Outra importante diferença entre os dois livros é que enquanto Holden saracoteia seu sarcasmo por Nova York, Tochtli está encerrado na casa de seu pai Yolcaut, um “palácio”, como ele diz, em que é vigiado por capangas. Os conflitos com a autoridade, normais nesta idade, são dirigido a Mazatzin, o suspeito professor particular – o garoto é impedido de ir à escola. “Realmente os cultos sabem muitas coisas dos livros, mas não sabem nada da vida (…) Tenho uma teoria: os cultos vão para a cadeia porque são uns cuzões“. Por conta de seu isolamento, todo o universo do garoto é filtrado pela ética do crime – e à crueldade inerente de toda criança soma-se certa autosuficiência própria aos “escolhidos”, como o pai o leva a acreditar. Seu poder é tanto que não raro ele alimenta leões e tigres do minizoo do palácio com “amigos” que caíram em desgraça; para o garoto, Yolcaut é El Rey. Daí temos, além de qualquer moral, uma linguagem tão seca que lembra uma alucinação.

…Que lembra também outro famoso narrador infantilizado: o Benjy de Som e Fúria. Se em Benjy o autismo é uma condição psíquica – e William Faulkner usa o fluxo de consciência para melhor digeri-la –, em Tochtli é sua condição política. Seu palácio-cárcere cheio de mimos o leva a se refugiar no narcisismo para conquistar uma identidade própria. Assim como o idiota de 33 anos da obra-prima de Faulkner, Tochtli apreende apenas algumas janelas do mundo; nessa operação de subtração, o leitor é ciente de um horror que, para seu narrador, ficará para sempre intocado. Como em um filme de suspense, poderíamos nos perguntar: será que uma hora ele vai se ligar no absurdo que está acontecendo?

Enquanto o autismo rege a ótica de um garoto rico na trincheira confortável de uma guerra – a do narcotráfico, que convulsiona o México –, em outro livro guiado por um pequeno narrador, O Que É O Quê, é justo a autoconsciência desta guerra que confere identidade ao protagonista. No belo exercício de ficção realista de Dave Eggers, Valentino Achak-Deng narra sua vida miserável como um dos Meninos Perdidos do Sudão. Eggers entrevistou longamente Valentino até “incorporar” o personagem na primeira pessoa, desde os 6 anos de idade, quando presencia a devastação de sua aldeia e atravessa todo o Sudão a pé – como outros 20 mil meninos, fugindo do regime genocida de Cartum –, rumo a um campo de refugiados no Quênia, e, de lá, até os EUA. A quantidade de perigos dos quais foge Valentino – militares sádicos, fome, sede, além de leões e jacarés – aponta para outra infância extraordinária: a de JG Ballard. No emocionante O império do sol, o maior nome da ficção-científica britânica lembra, usando o discurso indireto livre, sua passagem por um campo de concentração em Xangai durante a Segunda Guerra.

A guerra parece mesmo catalisar a imaginação desses narradores-mirins. É o tema que mais perturba, além do sexo, das escolas ruins e da mediocridade reinante, o Menino de Lugar Nenhum de David Mitchell. Que também se apoia na experiência do autor: ambos, Mitchell e Jason Taylor, o narrador de 13 anos, são gagos. Taylor é frontalmente contra o conflito nas Malvinas, em 1982: “A guerra pode ser um mercado para as nações, mas para os soldados não passa de loteria”, diz. Seu olhar distanciado lhe permite criar ficções e filosofices para achar um refúgio: “O mundo nunca para de desfazer coisas que o mundo nunca para de fazer. Mas quem disse que o mundo teria de fazer sentido?

A explosão até acordou os pássaros adormecidos nas árvores e os peixes devagarosos do mar – aconteceram cores de um carnaval nunca visto, amarelo misturado com vermelho a fingir que é laranja num verde azulado, brilhos a imitar a força das estrelas deitadas no céu e barulho tipo guerra dos aviões MIG“, narra Ondjaki em AvóDezanove e o Segredo do Soviético, romance que enfoca os embates entre os olhos poéticos de crianças em Luanda e uma misteriosa obra conduzida por militares soviéticos. Preferindo trabalhar sob a perspectiva da fantasia, Ondjaki reforma o mundo desolado daquelas crianças através de sua linguagem coloquial e seu olhar poetizante.

Os dois principais exemplos nacionais dessa linhagem são diametralmente opostos. Em Memórias Sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade aborda a infância superconfortável de um filho da aristocracia. O jovem playboy aproxima a dicção tatibitate tanto do deslumbre com o grande monde quanto do cinismo em relações às provincianas convenções paulistas. Naquela edulcorada sociedade do início do século, a guerra era abstração: “Gustavo Dalbert em noite de cabelo e cigarro disse-me que a arte era tudo mas a vida nada. Ele era músico e ia morar em Paris comigo, o amigo e jovem poeta João Miramar“.

Fofo e rebelde, ok, mas almofadinha ao extremo se comparado à mais ousada escritora da nossa literatura – a Hilda Hilst de O Caderninho Rosa de Lori Lamby. Contado em forma de diário, contém tudo o que os livros antes citados pouco sugerem: sexo. (Em Villalobos, só sabemos que sobre a prostituta preferida do pai, Quecholli, “tudo é segredo. Às vezes os dois desaparecem e voltam a aparecer, tudo muito misterioso“.) Lori Lamby é uma menina de oito anos usada e servida sexualmente pelos próprios pais, e que, tendo veleidades literárias, escreve sobre isso, com alegria e zero inocência. Um escândalo na época de sua publicação – quando Hilda tinha 60 anos e uma obra tão vasta quanto desconhecida –, o livro, escrito para fazer sucesso, tinha quatro narradores diferentes, além da própria Lamby, e finalizava com três fábulas pornográficas: foi um fracasso de vendas. Hoje, no entanto, o safado livrinho pode ser lido como uma das obras mais complexas e provocadoras de Hilda Hilst. Que conhecia o mesmo truque de Villalobos: para falar de violência, nada mais cruel – e sutil – do que jogar uma criança no meio do tiroteio.



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